Ter sido o aumento da tarifa de ônibus urbano o estopim para a explosão das insatisfações represadas da população brasileira não é tão surpreendente assim, mesmo em uma sociedade cuja maioria dos cidadãos tem seus custos de locomoção em transportes públicos integral ou parcialmente subsidiados, seja por vale ou auxílio transporte para empregados formais, condições especiais para estudantes ou passe livre para idosos. E, afinal, trata-se de uma questão de 20 centavos que puxou tamanha adesão e a abdução de tantas outras bandeiras.
O convívio antigo dos habitantes das metrópoles com as mazelas que os acompanham em seus deslocamentos diários oferecia a falsa impressão de que haveria a paciência na medida do tempo necessário para a espera da chegada do tema ao seu nível de prioridade política, para o planejamento e implantação das soluções mitigadoras. O problema é que esse período demandado é longo demais e, pior, as intervenções no meio urbano costumam acirrar as dificuldades durante a execução das soluções. Tal fato sugere que não há como responder a essa demanda em curto prazo e recomenda que um pacto entre o governo e a cidadania seja firmado.
A chegada do tema ao nível de prioridade em que foi classificado foi marcada pelo PAC2, quando substancial volume de recursos foi alocado, na ordem de R$ 39 bilhões para obras de mobilidade urbana. Entretanto, tal como em outras áreas de infraestrutura urbana no PAC1, a disponibilidade orçamentária/financeira chegou antes de um planejamento, e a estrutura de gestão se depara com a falta de preparação prévia, que ainda busca sua melhor configuração. E se a esfera federal, por um lado, ainda não conseguiu chegar próxima a uma estruturação mais eficaz da gestão da política pública em tela, de outro lado, os demais entes federados se ressentem da falta de planos e projetos que lhes façam capazes de acolher os investimentos com eficácia. Entretanto, são os projetos disponíveis que são apresentados e que acabam sendo contemplados com os recursos oferecidos pelo Governo Federal. O que se dispõe são propostas que apresentam soluções solteiras, sem integração com a totalidade da malha urbana e das demandas de deslocamentos onde se inserem. Tal realidade não parece negligenciada pelo governo, que na voz da Presidente, em pronunciamento no último dia 22 de junho, anunciou a elaboração de um Plano Nacional de Mobilidade Urbana.
O que parece passar despercebido por manifestantes, usuários, analistas e até mesmo entre gestores públicos é que o marco legal, o início de tudo, de todo e qualquer tratamento e planejamento da área de mobilidade urbana, está vigente há mais de um ano. Trata-se da Lei n.º 12.587, sancionada em 03 de janeiro de 2012 e em vigor 100 dias depois. Porém, tal falta de percepção não é sem motivo, pois se deve ao fato de nada ter sido implementado do que é disposto no referido diploma legal, salvo esparsas iniciativas em alguns poucos municípios de apresentação da lei à sociedade local organizada, de origens no poder executivo ou legislativo municipal.
Durante muitos anos sistemas viários e transportes públicos foram conceitos tratados de forma isolada e os investimentos e o planejamento feitos em ambas as áreas não tinham a responsabilidade de serem concebidos com sintonia entre si. A lei define o conceito de mobilidade urbana e fomenta a integração não somente entre as ações de cada uma dessas agora subáreas, mas entre ambas. O atual conceito, portanto, coloca dentro da mesma matriz o sistema de transportes coletivos, o sistema viário e, prioritariamente, com as alternativas de modos não-motorizados.
A política pública de mobilidade passa a ter que ser pautada por conceitos tais como eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana, equidade no uso do espaço urbano de tráfego e do acesso aos cidadãos aos meios de transporte público. Impõe a observância da integração entre os modos e serviços de transporte urbano, da sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento tecnológico. A lei obriga a transparência, com participação social no planejamento e com a abertura das composições de custos de tarifas, além de estabelecer os direitos dos usuários. Nesse sentido institui a necessidade de regulação e de meios de fiscalização que garantam o respeito a tais premissas.
Como política pública contemporânea, baseada em princípios democráticos, a participação e o controle sociais não são negligenciados na lei, nos seus princípios e diretrizes norteadores, e privilegiados em seu capítulo III, que determinam o amplo acesso à informação e a protagonização da cidadania na formulação do planejamento, na fiscalização e avaliação dos serviços. Assim, as recentes iniciativas de gestores públicos, tomadas no calor da reclamação popular, no sentido de divulgar composições tarifárias e de oferecer canal de discussão com a sociedade, nada mais consistem do que em observar o disposto em lei, ao respeitar o direito da cidadania.
Sendo o município o maior responsável pela gestão de seus meios de mobilidade urbana, este deverá diagnosticar, planejar, projetar e implementar na ponta a política pública em tela. São os municípios que elaboraram os projetos de empreendimentos até agora apresentados e contemplados nos programas federais de fomento financeiro. Entretanto, dada a não implementação da política pública de mobilidade urbana não devem ter sido projetados sob a observância das premissas e diretrizes da lei. Assim, investimentos que ora estão sendo contratados correm expressivo risco de serem verificados ineficazes em parte ou mesmo no todo, quando os planos municipais tiverem sido elaborados em conformidade com as prescrições legais.
Ao Governo Federal, segundo o capítulo IV da lei 12.587/2012, cabe a assistência técnica e financeira, bem como contribuir para a capacitação dos demais entes federados para a implementação da política pública, importando inclusive no assessoramento para a criação da estrutura organizacional local requerida para cumprimento da lei.
O fato é que tamanho déficit em infraestrutura em todos os setores induziu o Governo Federal a lançar-se obstinadamente ao fomento financeiro à execução de obras. Os setores contemplados no PAC 1 se depararam, na época, com diversos gargalos técnicos, ao que se ressalta a falta de projetos, de capacidade instalada para execução de obras e de elaboração de planos e projetos. Agora, tardiamente, a mobilidade urbana entra em pauta a partir do PAC 2 e vem percorrendo os mesmos percalços. Na mesma trilha, a disponibilidade de recursos financeiros vem antes do planejamento e da estruturação da gestão. Ao contrário de setores definidos há mais tempo, como saneamento básico ou habitação, por exemplo, a mobilidade urbana tem que partir de um novo paradigma e com um déficit maior e mais incômodo ainda.
O anúncio de mais R$ 50 bilhões para investimento em empreendimentos de mobilidade urbana parece fadado a aumentar o tamanho do denominador da razão que descreve o desempenho da execução financeira dos programas, mas as atitudes que influenciam no numerador parecem ainda não cogitadas. Assim, se a execução desses investimentos já conta com baixo desempenho, tal acréscimo apenas o vai diminuir.
A concretização das soluções para problemas de mobilidade urbana depende de uma ordem inconteste, como em quaisquer outros problemas de infraestrutura, cuja sequência é (1) diagnóstico, (2) planejamento, (3) elaboração de projetos de obras, (4) dotação orçamentária e, por fim (5) execução. A experiência pregressa demonstra que o passo quatro é sempre a resposta política mais fácil às demandas, e assim o foi no caso em questão. Portanto, é inevitável que uma parte desses recursos estejam mesmo fadados a empreendimentos que não darão a resposta na dimensão exigida nas ruas, reinvindicações estas amparadas pela lei de mobilidade urbana. Porém, a maior parte desses recursos vai ter que aguardar por uma estruturação que já está com pelo menos um ano de atraso.
Ao Governo Federal é recomendado tratar de rever seus programas à luz da lei, e organizar o quanto antes sua estrutura de gestão, o que importa na formação de massa crítica em mobilidade urbana para colocar em prática as parcelas essenciais de suas atribuições legais. Deixar em segundo plano os anúncios de recursos para este ou aquele projeto pontual aqui e ali e investir energia e dinheiro na implementação da Lei 12.587/2012, o que, aliás, consiste em colocar a cidadania que reivindica nas ruas como partícipe e parceira na condução das soluções.
Martha Martorelli- Presidente da Associação Nacional de Analistas e Especialistas em Infraestrutura – ANEInfra
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